sexta-feira, 28 de maio de 2010

A melhor poesia de todos os tempos de hoje

De Luciana Elaiuy (que eu desconhecia...), na edição de abril da revista piauí.


O Sal

Saiu pra comprar sal. Nem sempre a doce vida é a melhor vida. Doce enjoa.
O sal dá sede. Sal deixa a gente vivo. Ele saiu pra comprar sal.
Deixou a casa acesa. A luz em cima da mesa. A busca é sempre a mesma: levar
o sal pra casa, tempero de uma risada, graça até pro copo d'água,
mas a sede é sempre vesga.
Ele cruzou esquinas, cruzou os dedos, mal sabia. O sal era a ausência que
ele deixava quando saía, era o frio de estar sozinho, o sal era só até
a esquina, era ela sentir a falta um pouquinho. E ela sentiu. Por isso temperou os
planos pro futuro com têmporas tensas e empolgadas. Visões um tanto salgadas,
mão molhada, ela sob a luz daquela mesa. Esfomeada. Esperou. Mais um tanto
de espera, mais um tanto de espera, mais um tanto de espera, mais um tanto de
espera, ele não voltou. Pesou demais a mão no tempo e o tempero dessalgou.
Ela escreveu na geladeira "o sal acabou". E saiu pra comprar um doce, mas a
busca é sempre amor.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Três meses depois...

Pois é, passaram-se três meses, e eu nada. Onda de assaltos aqui na Demétria, trampo em excesso acompanhado de cansaço em excesso, muita reflexão... sobraram motivos para eu não ter o ímpeto de escrever aqui.

Claro, teve muita coisa boa: meditações no centro budista, a visita do Lama Ole aqui a Botucatu, a inauguração oficial do centro pelo Lama, a festa de Reveillon da Demétria, o Carnaval (essa depois eu conto; nunda tinha imaginado um dia desfilar na avenida...), várias reuniões deliciosas com o pessoal aqui do condomínio, entre outros bons momentos.

Mas eu estava por demais introspectivo para vir aqui.

Agora voltei.

Finalmente, consegui encontrar disciplina para meditar em casa. Inscrevi-me num curso de desenho com o lado direito do cérebro, para ver se consigo retomar essa arte em que parei aos 3 anos de idade. Recomecei as práticas do Pequeno Refúgio, o início do caminho na linhagem de budismo tibetano que pratico. Estou prestes a voltar ao Kung Fu, que abandonei quando me mudei de Sampa para cá. E escrevi um livro infantil com a Rita, minha esposa, em mais um ensaio para resgatar minha criatividade perdida no tempo. A partir de agosto, farei um curso de inglês que utiliza técnicas de teatro.

Este ano promete, já que voltei a sentir o impulso, a força de vontade circular por mim.

Pra começo de conversa, deixo aqui um texto zen-budista, de Thich Nhat Hanh, um mestre budista vietnamita. Esse conceito de interser, que faz tanto sentido quando a gente pensa nas implicações ambientais, sociais, culturais e espirituais da ação humana - e mesmo nas econômicas -, tem sido um norte para mim.

Impuro ou imaculado. Sujo ou puro. Estes são conceitos que formamos em nossa mente. Uma bela rosa que recém-cortamos e colocamos em um vaso é imaculada. Ela cheira tão bem, tão pura, tão fresca. Ela traduz a ideia de ser imaculado. O oposto é uma lata de lixo. Cheira muito mal e está cheia de coisas em putrefação.

Porém, isso é apenas quando você olha superficialmente. Se você olhar mais profundamente, você verá que, em apenas uns cinco ou seis dias, a rosa se tornará parte do lixo. Você nem precisa esperar cinco dias para ver isso. Se você simplesmente olhar para a rosa, olhar profundamente, você pode ver isso agora. E, se você olhar dentro da lata de lixo, você verá que em uns poucos meses seu conteúdo poderá se transformar em adoráveis vegetais, e até mesmo em uma rosa. Se você for um bom jardineiro orgânico e tiver os olhos de um bodhisattva, olhando para a rosa você poderá ver o lixo, e olhando para o lixo você poderá ver uma rosa. Rosas e lixo intersão. Sem uma rosa, não podemos ter lixo; e, sem o lixo, não podemos ter uma rosa. Eles precisam muito um do outro. A rosa e o lixo são iguais. O lixo é tão precioso quanto a rosa, na mesma medida. Se nós olharmos profundamente para os conceitos de impureza e pureza, seremos remetidos para a noção de interser.

sábado, 21 de novembro de 2009

Ajudemos Bat Nha

Thich Nhat Hanh é um moge budista vietnamita que dissemina belíssimos textos sobre o budismo, além de ser um pacifista, indicado ao Nobel da Paz por Martin Luther King, em 1967. Os livros dele são de uma clareza e uma profundidade arrebatadoras.

Após visitar, em missão de paz, os Estados Unidos e a Europa, ele foi expulso do Vietnã pelo governo comunista e ficou 40 anos sem poder voltar.

Quando voltou, inspirou milhares de pessoas em seu país e recebeu o monastério de Bat Nha para acomodar seus seguidores. Monges e monjas passaram a estudar e praticar o budismo lá, mantendo essa cultura pacifista.

Então os governantes agiram: a polícia, apoiada por parte das comunidades locais, desalojou e agrediu os monges e monjas, além de destruir as imagens e textos sagrados. Eles se refugiaram em outro pequeno monastério, resistindo às ordens da polícia, que diz a eles que se dispersem e voltem às suas regiões de origem.

Vejam o vídeo abaixo, que conta essa triste história.





As melhores poesias de todos os tempos de hoje

Dois da Martha Medeiros, do livro Cartas extraviadas e outros poemas.


85.

quando se é jovem veste-se a liberdade de jeans
estrada, sexo, rebeldia e vertigem
quando já não se é, deseja-se uma liberdade undress
nudez, nenhum comportamento para vestir


110.

o tempo é uma roldana

a cabeça anda pra frente,
desenvolve

e o corpo anda pra trás,
desmorona

inexplicável
a vida engrena

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Poema a cinco mãos

Eu tinha 19 anos. Do nada, resolvemos ir à Praia Grande. Eu, Rodrigo Brasil, Rodrigo Petrônio, Flavia Rocha e Franco Marino. Se não me engano, num Fiat 147, com um aparelho de som na traseira do carro.

Éramos cinco grandes amigos, e costumávamos nos reunir para ler poemas uns dos outros e de autores consagrados, conversar principalmente sobre literatura e, claro, fetejar a vida.

No meio do caminho, papel e caneta, cada um escrevendo uma, duas frases, saiu este que vocês podem ler.


Por trás de óculos marrons

(marrons, pretos, não importa)
Vejo a vida acidentada

Afirmo que nada importa
Se o máximo não for o mínimo

Nunca sejas um desuniverso
Junta-te a teu reverso
e faça um verso
imerso em ti

Não temas o instante
A eternidade passa em segundos
(tens todos os segundos...)

Não te queixes, não te escondas
Desperta e recita
E tua tristeza será saciada

Os suicidas nunca tiveram razão
E um poema a cinco mãos
basta para justificar a vida

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Sociabilidade


Se bem que não,
nenhuma desavença

voz elevada à ameaça,
certo olho cínico
ou o gesto desmedido,

vão

na verdade,
a incomunicabilidade

a palavra refreada,
quase ausente

o silêncio mundo
cão

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Em defesa do romance


Esse é o nome do artigo do Mario Vargas Llosa na edição deste mês da revista piauí. Ler essa revista é um grande prazer. Ela traz pontos de vista quase antropológicos, me levando a experimentar outras vidas, conhecer detalhes inimagináveis de possibilidades de vida de outros seres humanos. Fora o bom humor, a tiração de sarro. Viver sorrindo é o melhor jeito de passar por este mundo, não acham?

O artigo em questão, um dos mais belos que pude ler nos últimos tempos, é uma defesa veemente e poética da literatura como algo essencial para o ser humano. Deem uma olhada no trecho abaixo pra sentir um cheirinho do texto.


À diferença  do gorjeio dos pássaros ou do espetáculo do sol fundindo-se no horizonte, um poema, um romance não estão pura e simplesmente ali, fabricados por acaso ou pela natureza. São uma criação humana, e é lícito perguntar como e por que nasceram, e o que deram à humanidade para que a literatura, cujas origens remotas se confundem com as da escrita, tenha durado tanto tempo. Nasceram como fantasmas incertos, no íntimo de uma consciência, projetados a ela pelas forças conjugadas do inconsciente, de uma sensibilidade e de algumas emoções, a que, numa luta às vezes implacável com as palavras, o poeta, o narrador, deram forma, corpo, movimento, ritmo, harmonia, vida. Uma vida artificial, feita com a linguagem e a fantasia, que coexiste com a outra, a real, desde tempos imemoriais, e à qual acorrem homens e mulheres porque a vida que têm não lhes basta, não é capaz de oferecer tudo aquilo que gostariam de ter. O romance não começa a existir quando nasce, por obra de um indivíduo; só existe realmente quando é adotado pelos outros e passa a fazer parte da vida social, quando se torna, graças à leitura, experiência partilhada.

Um dos primeiros efeitos benéficos se verifica no plano da linguagem. Uma comunidade sem literatura escrita se exprime com menos precisão, riqueza de nuances e clareza do que outra cujo instrumento principal de comunicação, a palavra, foi cultivado e aperfeiçoado graças aos textos literários. Uma humanidade sem romances, não contaminada pela literatura, se pareceria com uma comunidade de tartamudos e afásicos, atormentada por problemas terríveis de comunicação causados por uma linguagem ordinária e rudimentar.

Isso vale também para os indivíduos, obviamente. Uma pessoa que não lê, ou que lê pouco, ou que lê apenas porcarias, pode falar muito, mas dirá sempre poucas coisas, porque para se exprimir dispõe de um repertório reduzido e inadequado de vocábulos. Não se trata apenas de um limite verbal; é, a um só tempo, um limite intelectual e de horizonte imaginário, uma indigência de pensamentos e de conhecimentos, porque as ideias, os conceitos, mediante os quais nos apropriamos da realidade e dos segredos da nossa condição, não existem dissociados das palavras, por meio das quais as reconhece e define a consciência. Aprende-se a falar com precisão, com profundidade, com rigor e agudeza, graças à boa literatura, e apenas graças a ela.

Nenhuma outra disciplina, nenhum outro ramo das artes, pode substituir a literatura na formação da linguagem com que as pessoas se comunicam. Os conhecimentos que nos transmitem os manuais científicos e os tratados técnicos são fundamentais; mas eles não nos ensinam a dominar as palavras nem a exprimi-las com propriedade: pelo contrário, amiúde são mal escritos e revelam certa confusão linguística porque os autores, às vezes eminências indiscutíveis em sua profissão, são literariamente incultos e não sabem se servir da linguagem para comunicar os tesouros conceituais de que são detentores. Falar bem, dispor de uma linguagem rica e variada, encontrar a expressão adequada para cada ideia ou emoção que se queira comunicar, significa estar mais preparado para pensar, ensinar, aprender, dialogar e, também, para fantasiar, sonhar, sentir e emocionar-se.

De uma maneira sub-reptícia, as palavras reverberam em todas as ações da vida, até mesmo nas que parecem muito distantes da linguagem. Isso, na medida em que, graças à literatura, evoluiu até níveis elevados de refinamento e de sutileza nas nuances, elevou as possibilidades da fruição humana e, com relação ao amor, sublimou os desejos e alçou à categoria de criação artística o ato sexual. Sem a literatura não existiria o erotismo. O amor e o prazer seriam mais pobres, privados de delicadeza e de distinção, da intensidade a que chegam todos aqueles que se educaram e estimularam com a sensibilidade e as fantasias literárias. Não é exagero afirmar que um casal que haja lido Garcilaso, Petrarca, Góngora e Baudelaire ama e usufrui mais do que outro, de analfabetos semi-idiotizados pelas séries de televisão. Em um mundo iletrado, o amor e a fruição não poderiam ser diferenciados daqueles que satisfazem os animais, não iriam além da mera satisfação dos instintos elementares: copular e devorar.