domingo, 6 de setembro de 2009

Nós e os animais

O trecho abaixo faz parte de um ensaio do escritor inglês Julian Barnes, presente no livro Não há o que temer, da editora Rocco. Na verdade, não gostei do ensaio como um todo nem da postura do autor. Até me deixou irritado.

Obviamente, isso significa que mexeu comigo de alguma forma. Ele é ácido e sarcástico. Mas esse trecho é mesmo pra pensar a respeito. Deem uma olhada. Eu li na edição de agosto da revista piauí.

"(...) Na Idade Média, costumavam mandar animais a julgamento - gafanhotos que destruíam plantações, carunchos que destruíam as vigas das igrejas, porcos que jantavam bêbados caídos na sarjeta. Às vezes, o animal era levado ao tribunal, às vezes (como acontecia com insetos) era julgado necessariamente in absentia. Havia um julgamento completo, com promotoria, defesa e um juiz de toga, que podia ordenar uma variedade de punições - liberdade condicional, banimento, inclusive excomunhão. Às vezes até mesmo execução judicial: um porco podia ser enforcado por um funcionário do tribunal de luvas e capuz.

"Tudo isso parece - agora, para nós - incrivelmente estúpido, uma expressão da incompreensível mente medieval. Entretanto, era perfeitamente racional e perfeitamente civilizado. O mundo foi feito por Deus, e, portanto, tudo o que acontecia nele ou era uma expressão do desígnio divino ou uma consequência do livre-arbítrio que Deus concedeu à Sua criação. Em alguns casos, Deus podia utilizar o reino animal para castigar Sua criação humana: por exemplo, mandando uma praga de gafanhotos, que o tribunal tinha, portanto, a obrigação legal de declarar inocentes. Mas e se um bêbado caía numa vala, tinha a metade do rosto comido por um porco e o ato não podia ser interpretado como ordenado por Deus? Era preciso encontrar outra explicação. Talvez o porco estivesse possuído pelo demônio, que o tribunal poderia expulsar. Ou talvez o porco, embora não tivesse livre-arbítrio, pudesse ser, mesmo assim, considerado responsável pelo que tinha acontecido.

"Para nós, isto pode parecer mais uma prova da engenhosa bestialidade humana. Entretanto, há outra maneira de interpretar: como uma elevação do status dos animais. Eles eram parte da criação de Deus e dos desígnios de Deus, não simplesmente colocados na Terra para prazer e uso do Homem. As autoridades medievais levavam os animais a julgamento e avaliavam seriamente seus atos criminosos; nós colocamos animais em campos de concentração, os enchemos de hormônios e os retalhamos de forma que eles nos façam lembrar o mínimo possível algo que um dia grasnou ou baliu ou mugiu. Qual dos mundos é o mais sério? Qual o mais avançado moralmente?"

Seria cômico, se não fosse trágico, não é?

3 comentários:

  1. Nossa, um salto muito grande. Deu até vertigem.
    Devagar com o andor.

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  2. Parabééééns pelo blog, Lu. Continue a escrever!
    Quanto à passagem, me lembrou a parte final da "Revolução dos bichos"... Quem era porco, quem era humano? Às vezes o homem reproduz as qualidades mais "animalescas", enquanto os animais dão exemplos de trabalho em grupo -- "competência" que nos esforçamos a ensinar na escola aos nossos filhos...

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  3. Pois, é, queridos. O salto é grande, mesmo, sem nenhum tipo de análise - meras impressões de um autor prepotente e arrogante, esse Julian Barnes. Mas que é verdade que muita coisa mudou na superfício e permaneceu igual no seu sentido mais profundamente obscuro, isso é verdade. Nosso tratamento aos animais é mesmo um exemplo. E o pior de tudo é que a forma como tratamos os animais é a forma como tratamos a nós mesmos, não é?

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